terça-feira, 16 de outubro de 2007

ENTREVISTA BRIAN DE PALMA

Brian De Palma fala sobre seu Novo Projeto

Em setembro do ano passado, quando estava no Festival de Toronto para apresentar “Dália Negra”, Brian De Palma foi procurado por um representante da produtora HDNet Films com uma proposta: desenvolver um filme de U$ 5 milhões, sobre qualquer tema, desde que realizado em vídeo digital de alta definição.

adequado ao formato. Pouco depois, tomou conhecimento de um incidente da Guerra do Iraque em que soldados americanos de um posto de controle estupraram uma garota de 14 anos, massacraram sua família, atiraram no rosto dela e incendiaram seu corpo. “Como esses garotos podem ter chegado a esse ponto? De Palma respondeu que concordaria, se encontrasse um assunto. Procurando respostas, li blogs de soldados, assisti a seus vídeos amadores, surfei pelos seus websites e pelo material postado no YouTube. Estava tudo lá, e tudo em vídeo”.


O resultado desse trabalho foi exibido pela primeira vez na sexta-feira passada, na competição do Festival de Veneza, provocando alto impacto. “Redacted”, que também será exibido no Festival de Toronto e tem estréia garantida no Brasil, é a recriação ficcional desse episódio brutal na forma de um documentário multiforme, reproduzindo os meios de captação e reprodução da imagem digital hoje: diários filmados, documentários amadores, câmeras de vigilância, testemunhos online. Na verdade, trata-se praticamente de uma refilmagem de “Pecados da Guerra”, que De Palma realizou em 1989, sobre um episódio muito semelhante ocorrido na Guerra do Vietnã.

Inconformado com a repetição de erros do passado e com a situação da mídia nos Estados Unidos hoje, De Palma fez um filme profundamente político, não só pelo seu conteúdo, mas também pela proposta de uma reflexão em torno do estatuto da imagem nos dias de hoje. “Redacted” significa “editado”, numa referência à forma como a informação sobre a Guerra do Iraque vem sendo veiculada pelos grandes meios de comunicação _“na base da omissão, da mentira e da censura”, nas palavras do diretor. Em entrevista à Folha, Brian De Palma transbordou sua indignação com a guerra e criticou, ainda, a indústria do cinema americano.
Folha - Depois da primeira exibição de “Redaced”, a platéia parecia um tanto atônita, sem saber como reagir ao filme. Você já acompanhou uma projeção pública? O que achou da reação?
Brian de Palma - Antes de Veneza, mostrei o filme para poucos amigos, produtores e distribuidores. Notei essa mesma reação, em todas as exibições que fiz. Não sei bem por que, talvez por ser algo novo as pessoas ainda não saibam exatamente como processar o que viram. Quando você faz algo inovador, é natural que perguntem o que é isso.
Mas, na verdade, só estou apresentando um material na forma como eu o descobri. Procurei determinadas informações, e a forma do filme evoluiu naturalmente dessa pesquisa. Fiz “Redacted” da maneira que me pareceu a mais correta para expor o tipo de material que encontrei.
Folha - Como foi o trabalho de pesquisa?
De Palma - Basicamente, usei as ferramentas de busca da internet. Juntei mais de cem páginas de material e descobri tudo o que você vê no filme, não inventei absolutamente nada. O que selecionei e o que ficou na versão final é baseado em material de plena confiança. Está tudo lá. Nem sempre pudemos identificar a origem de certos materiais, que por isso não foram usados. Mas apenas por uma questão legal, não duvidei da veracidade deles.
Folha - Além da pesquisa virtual, você chegou a conversar com soldados?
De Palma - Sim, vários. A pesquisa não se limitou à internet. E o mais impressioannte é que as histórias são as mesmas, exatamente as mesmas do Vietnã! Os veteranos se fazem as mesmas perguntas, dizem as mesmas coisas: “O que fomos fazer lá? Todo mundo parece me odiar! Que diabos é isso? Meu amigo expliodiu atrás de mim!”. É exatamente a mesma história que contei em “Pecados da Guerra”.

Folha - Você encontrou muitas barreiras legais enquanto desenvolvia este filme?
De Palma - Sim. Precisei consultar advogados para saber o que poderia ser usado o tempo todo. O material que cai na internet não é de domínio público se você for fazer um filme de ficção. E isso é uma loucura. Nunca entendi direito como funciona essa legislação. Em nosso país, se você faz uma obra de ficção baseada em algo que supostamente aconteceu de verdade, pode facilmente ser processado pelas pessoas que viveram a história _mesmo depois de essa história ter sido publicada, impressa e transmitida pela televisão infinitas vezes. O argumento utilizado é que o cinema é um meio comercial, mas então eu pergunto: a televisão não é um meio comercial? É difícil entender porque perdemos tanto tempo com isso... Gostaria, por exemplo, de usar uma frase dita por um soldado numa determinada situação, mas não pude fazê-lo. Tudo, no filme, é ficcionalizado, mas não menos verdadeiro.
Folha - Como foi esse processo de “ficcionalização”?
De Palma - No fundo, fácil, porque na verdade já fiz esse filme antes. Conhecia o material dramático. Só me reaproximei daquela história em um novo país, o Iraque, sem precisar me afastar do material real que chegou às minhas mãos.
Folha - Por que a maior parte dos americanos não chegou a esse material, se ele está todo disponível na internet?
De Palma - Isso é curioso. Não sei por que, mas toda a forma como a informação circula mudou, e muita gente ainda não sabe como chegar até ela. Do Vietnã para cá, acho que o aspecto do mundo que sofreu a maior transformação foi a mídia, que hoje não informa, mas esconde a informação. É preciso fazer um filme sobre isso: o que aconteceu com a mídia? Que tipo de transformação se efetuou? A primeira Guerra do Golfo, por exemplo, foi impressionante. Parecia um show de fogos de artifício. Ninguém via onde as bombas caíam, eram apenas luzes no céu. Mas, Deus do céu, aquelas bombas estavam caindo sobre pessoas!

Folha - Ter feito esse filme em vídeo foi um ato político?
De Palma - Não, o vídeo não é político por ser vídeo, é apenas um meio que está aí, disponível. O fato é que surgiu toda uma nova indústria criativa a partir do vídeo e da tecnologia digital e nós não fazemos idéia de onde ela vai parar. Toda vez que me conecto na internet, descubro alguma coisa nova. Há correspondentes de televisão em várias partes do mundo que transmitem programas ao vivo, de suas próprias casas. Hoje, cada um pode ter seu próprio programa de TV. Isso é uma revolução.
Folha - Antes desse filme, você já estava amplamente familiarizado com a internet?
De Palma - Sim, adoro computadores, sou muito interessado no desenvolvimento da tecnologia, nas novas formas de captar e usar a imagem. Está tudo mudando muito rápido. Presto atenção na minha filha para saber o que está aparecendo.
Folha - Como você espera que seu filme seja recebido nos Estados Unidos?
De Palma - Fiz esse filme o mais silenciosamente possível, não queria que a notícia vazasse e algo pudesse atrapalhar nosso processo de trabalho. Tenho certeza de que “Redacted” vai desagradar muita gente.
Sua primeira exibição está sendo aqui no Festival de Veneza. Acredito que, nos Estados Unidos, a reação vai ser bastante polarizada. A direita vai chamá-lo de propaganda comunista. Será uma reação forte. Já está sendo, aliás, antes mesmo do filme ser exibido.
Folha - Qual será, na sua opinião, o desenvolvimento da guerra a partir de agora? Haverá uma retirada em um curto espaço de tempo?
De Palma - Não. Essa guerra ainda vai durar muito tempo. Provocamos um caos e agora fica difícil sair dele. Alguém acreditou, algum dia, que nossa presença no Iraque tornaria algo melhor? Obviamente não sabemos nada! O que estamos fazendo lá? Mas a consciência do desastre está cada vez maior. Talvez com o novo Congresso, as coisas comecem a mudar. O desenrolar dessa guerra foi tão ruim e há tanta mentira que não há como evitar que as coisas venham à tona. É por isso que vamos ver mais filmes sobre esse assunto. Ainda não vi o filme de Paul Haggis [“In the Valley of Elah”, também em exibição em Veneza], mas tenho certeza de que é muito interessante. Oliver Stone vai fazer um novo filme sobre o Vietnã, e muitos outros estão vindo por aí.
Folha - Você é a favor de uma retirada imediata?
De Palma - Não sou político nem militar, não me considero com elementos suficientes para dizer qual a saída para essa situação. Só sei que não deveríamos estar lá, simples assim! O Oriente Médio é uma área complicada, que foi dividida e explorada. Árabes têm sido mortos há décadas. Já passamos por isso, lemos nossos livros de história, mas estamos nós de novo, invadindo, matando, estuprando, recolhendo todos os recursos. Até o Império cair e sermos expulsos. O que há de novo nisso? Minha maior esperança é que há um limite físico, no sentido de que não temos gente o suficiente para continuar mandando para a guerra.
Folha - Por que, no fim do filme, você exibe fotos reais e faz questão de deixar claro que essas fotos são reais, em uma cartela explicativa?
De Palma - Num filme como esse é preciso deixar claro o que é verdadeiro e o que é falso. Vivemos na era da reality TV, não quis reproduzir esse tipo de lógica no filme.
Folha - Você pretende continuar a fazer filmes políticos?
De Palma - Não sei. Estou muito indignado com o grau de corrupção nos Estados Unidos hoje. Certamente quero fazer um filme sobre isso. Também quero fazer outro filme usando essa mesma técnica, mas ainda não sei exatamente o quê.
Folha - Depois dessa experiência, você chegou a pensar em dirigir um documentário “puro”?
De Palma - Sim, se fosse um filme no estilo do cinema direto, o que sempre me interessou. Mas isso consumiria muito tempo; é preciso ficar dois, três anos acompanhando alguém para obter alguma coisa interessante, e tenho muitas idéias de ficção na minha cabeça.
Folha - Você acredita que seu filme possa mudar alguma coisa?
De Palma - Não quero mudar nada, mas espero, sim, fazer as pessoas entenderem melhor o que esses soldados têm passado e lutar para que esses fatos não sejam esquecidos. Moro numa região da Califórnia próxima do hospital dos veteranos. Vejo, todos os dias, veteranos caminhando nas ruas com um olhar absolutamente perdido, distante. Parece que estão caminhando por Marte... Não podem mais se comunicar, se relacionar com suas comunidades. As relações se destroçam depois de experiências como essa. É uma história terrível atrás da outra, o que deve continuar por décadas. Essas pessoas estão profundamente traumatizadas. Foi assim no Vietnã. Não temos idéia do tamanho do dano psicológico que sofreram.
Folha - É possível voltar à ficção depois de um filme como esse?
De Palma - Não sei... Quero ainda fazer muitos filmes, mas filmes que sejam do meu interesse, do coração. Estou cansado de lidar com todo o “mambo jambo” do cinema. Todos os executivos de Hollywood, hoje, vieram da televisão. Veja bem: há muita coisa boa na televisão, principalmente na TV a cabo, mas esses executivos simplesmente não entendem nada de cinema. Eles querem produzir coisas que possam passar no horário nobre.
Folha - Como está o projeto da continuação de “Os Intocáveis”?
De Palma - Ainda estamos procurando o ator ideal para interpretar Al Capone, mas não encontramos. Não tenho idéia se esse será meu próximo filme, mas esse projeto ainda está vivo.
Folha - Como vê as perspectivas de sua carreira, daqui para adiante?
De Palma - Qual é o objetivo de uma carreira cinematográfica hoje? Fazer um sucesso atrás do outro? Mas por quê? Depois que você juntou um certo dinheiro, qual é o sentido em ganhar mais dinheiro? Essa é a grande questão. Quando fiz “Missão Impossível”, meu filme de maior sucesso, Tom Cruise veio me perguntar se queria fazer “MI2”. Mas por quê? O que pode haver de interessante criativamente aí? Vejam Sam Raimi, um diretor tão talentoso, e o que ele tem feito? Vai passar o resto da vida fazendo “Homem-Aranha”! Vão fazer mais três filmes! Sinceramente, esse é um preço alto demais para ganhar 1 bilhão de dólares... Na minha idade, aproveito o que me resta. Estou feliz com os filmes que fiz, e quero fazer com que todos os dias sobre este solo que piso sejam bons dias.
(Esta é a versão integral da entrevista com Brian De Palma, cujos principais trechos foram publicados na capa da versão impressa da Ilustrada desta terça-feira.)Um teaser trailler do novo filme do Brian De Palma "redacted" pode ser conferido clicando aqui.
Filmografia
A Festa de Casamento (Wedding Party, 1964)
The Responsive Eye (1966)
Murder à la Mod (1967)
Quem Anda Cantando nossas Mulheres (Greetings, 1969)
O Homem de Duas Vidas (Get to Know Your Rabbit, 1972)
Irmãs Diabólicas (Sisters, 1973)
O Fantasma do Paraíso (Phanton of the Paradise, 1974)
Trágica Obsessão (Obsession, 1976)
Carrie, a Estranha (Carrie, 1976)
A Fúria (The Fury, 1978)
Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980)
Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981)
Scarface (Idem, 1983)
Dublê de Corpo (Body Double, 1984)
Quem Tudo Quer, Tudo Perde (Wise Guys, 1986)
Os Intocáveis (The Untouchables, 1987)
Os Pecados de Guerra (Casualties of War, 1989)
A Fogueira das Vaidades (The Bonfire of the Vanities, 1990)
Síndrome de Caim (Raising Cain, 1992)
O Pagamento Final (Carlito’s Way, 1993)
Missão Impossível (Mission: Impossible, 1995)
Missão Marte (Mission to Mars, 2000)
Femme Fatale (Idem, 2002).
Dhalia Negra (2006)
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